sexta-feira, 10 de outubro de 2014

FREUD E A TEORIA DO DESENVOLVIMENTO PSICOSSEXUAL


LIÇÃO 1 - A estrutura do psiquismo: Id, Ego e Superego

LIÇÃO 2 - Os estádios do desenvolvimento psicossexual
                                         • O estádio oral
                                         • O estádio anal
                                         • O estádio fálico
                                         • O estádio de latência
                                         • O estádio genital

LIÇÃO 1
A estrutura do psiquismo

A compreensão da perspectiva freudiana sobre o desenvolvimento exige a clarificação da estrutura do psiquismo humano.
Na primeira tópica, isto é, na primeira descrição do aparelho psíquico, Freud distingue três regiões: o consciente, o pré-consciente e o inconsciente.
Recorre, como já vimos, à imagem do iceberg para ilustar que, pela enorme dimensão da região inconsciente, só temos consciência de uma pequena parte dos conteúdos da nossa mente.

Novas descobertas sobre o funcionamento psíquico conduzem Freud a aprofundar a sua concepção. Foi importante para tal modificação uma visão mais clara do mecanismo do recalcamento. Este era, na primeira concepção do aparelho psíquico, uma função desempenhada pela censura, guardião vigilante que não permitia a passagem (direta) para o plano consciente do que se encontrava recalcado no inconsciente. Mais tarde, Freud apercebe-se de que o inconsciente não se reduz aos conteúdos psíquicos recalcados e que em todas as instâncias psíquicas há elementos inconscientes em maior ou menor grau.

A 2ª tópica apresenta uma visão mais completa (integra os níveis psíquicos anteriormente apresentados) e descreve de modo mais adequado a interação dinâmica entre as instâncias psíquicas (agora denominadas Id, Ego, e Superego).

Reforça-se a ideia de que o plano inconsciente condiciona decisivamente a vida psíquica dado que não se reduz o inconsciente à dimensão mais profunda da mente. Com efeito, se o Id é totalmente inconsciente, o Id não é todo o inconsciente.


1. O Id, o Ego e o Superego

O Id, o Ego e o Superego são as estruturas essenciais da personalidade, estabelecendo entre si uma relação conflituosa à qual se deve o dinamismo da vida psíquica.

O Id: o prazer e já!

O Id (termo latino que traduz o termo alemão “Es”) apresenta, segundo Freud, várias características:

• É a dimensão psíquica que constitui o fundo ou a matriz a partir da qual se formam, por diferenciação o Ego e o Superego.
• É formado por tudo o que herdamos e está presente à nascença: instintos, pulsões, desejos. De entre os instintos destacam-se o instinto de vida e o instinto de morte (agressivo e destrutivo). É o reservatório dos impulsos biológicos mais básicos que dinamizam ou dão energia ao comportamento.
• É totalmente inconsciente. Contém uma parte dos elementos psíquicos recalcados mas não é todo o inconsciente.
• Está totalmente desligado do mundo real, da realidade externa.
• Não atua segundo princípios lógicos e morais. Desconhece o princípio lógico de não-contradição porque nele coabitam, sem se neutralizarem mutuamente, instintos de vida e instintos de morte; é amoral porque pretende realizar tudo o que lhe agrada sem se preocupar com o facto de isso ser bom ou mau.
• Que princípio rege a sua atividade? Um só: o princípio de prazer. Procura satisfazer imediatamente os seus impulsos e instintos – obter prazer ou evitar a dor – desconhecendo as circunstâncias, se a realidade o permite ou não.
  Não tendo qualquer conhecimento do que é a realidade o Id procura satisfazer as suas pulsões (descarregar a tensão, reduzi-la de modo a que o organismo se sinta confortável) mediante um processo irrealista: o processo de pensamento primário. Este processo consiste em formar uma imagem mental do objecto desejado. Mas este processo somente ilude a satisfação do desejo, não o realiza (é muito diferente comer um bife e formar a imagem mental de um bife que se deseja comer).
• O Id é, em grande parte, animado pelo impulso sexual. É o grande reservatório da libido (a energia das pulsões sexuais). Tem, por isso, uma forte ligação ao corpo, à nossa dimensão biológica.

O Ego: sejamos realistas.

O Id não tem qualquer relação direta com a realidade, com o mundo exterior (não distingue a imagem mental da realidade da própria realidade). Para entrar em contacto com a realidade e agir sobre ela, precisa do Ego. Ao mundo fantasioso do Id, o Ego opõe a realidade do mundo externo. Contudo, como vamos ver, o Ego não é inimigo do Id: está, de certa forma (realista), ao seu serviço.
Eis as suas características fundamentais:
• O Ego começa a desenvolver-se por volta dos 6 meses.
• O Ego funciona segundo princípios lógicos e racionais embora, paradoxalmente, seja em parte inconsciente.
• O princípio segundo o qual atua é o princípio de realidade. Regulando-se por este princípio, o Ego adia a satisfação dos impulsos do Id até que o objecto apropria- do a essa satisfação surja na realidade. Esta suspensão temporária significa que o Ego está realisticamente ao serviço do princípio de prazer.
• O Ego desempenha o papel de executivo e de mediador em relação ao Id: decide que instintos e pulsões podem, na realidade, ser satisfeitos e de que modo. O Ego, na verdade, desenvolve-se a partir do Id e existe para satisfazer as necessidades deste e não para as frustrar. Mas é realista: sabe ou aprende que nem tudo é possível, que para termos certas coisas temos de renunciar a outras. Não podemos fazer tudo o que queremos.

Cumprindo o papel de mediador entre as exigências pulsionais do Id e as possibilidades que a realidade oferece, o Ego tenta defender-nos contra o assalto desenfreado das paixões e impulsos irrealistas do Id. Procura conciliar as divergências que existem entre as pulsões e os limites que a realidade impõe. Adaptação à vida eis o seu lema. O princípio de realidade não exclui o princípio de prazer.
Assim, o Ego visa impedir não o prazer mas sim uma descarga imediata da energia pulsional, isto  é, uma satisfação que não tenha em conta os limites característicos do meio ambiente.

O Superego: o dever acima de tudo!

Se o Id é o representante das pulsões e o Ego o da realidade, o Superego é o representante da moralidade: diz-nos não o que podemos ou não fazer mas sim que devemos ou não devemos fazer. Eis o que há de fundamental a dizer sobre o Superego:

• O Superego forma-se ou começa a desenvolver-se por volta dos 3-5 anos.
• É o resultado da educação que recebemos, do conjunto de punições e de recompensas de que fomos alvo. É o representante interno dos valores, normas e ideais morais de uma sociedade. Estes valores, normas e ideais – interpretados pelos pais e educadores – são transmitidos à criança que os interioriza (processo de introjecção) de tal modo que se tornam inconscientes (pelo menos o modo como foram interiorizados).
• Um Superego demasiado repressivo – fruto de uma educação severa – é uma ameaça ao nosso desenvolvimento saudável, tornando-nos inibidos, complexados, vítimas de sentimentos de culpa exagerados, etc.
• O Superego vigia-nos dentro de nós. Reprime certos atos, favorece outros e, em certa medida, é indispensável para uma vida equilibrada no seio da sociedade.
• O papel do Superego é triplo:
  1 – Inibir ou refrear os impulsos, sobretudo de natureza sexual e agressiva, que provenientes do Id podem arrastar o Ego em virtude da sua forte pressão.
  2 – Persuadir o Ego a substituir objectivos realistas por objectivos morais e moralistas.
  3 – Procurar a perfeição moral (por isso há nele uma tendência para bloquear a libertação dos instintos).

A vida psíquica desenrola-se sob o regime do conflito. O Id centra-se no prazer, na gratificação imediata dos impulsos, e ignora a realidade. O Superego sobrepõe a moralidade à realidade. Entre a força dos impulsos instintivos e as ameaças de punição do representante da moralidade, está o Ego que Freud, metaforicamente, compara a um “escravo” que tem de agradar a dois senhores em luta um com o outro. Se já era difícil, dados os constrangimentos da realidade, encontrar forma de satisfazer as pulsões do Id, o surgimento do Superego (cujo desenvolvimento se conclui com a ultrapassagem do complexo de Édipo, como veremos) traz problemas acrescidos. Com efeito, o Superego tenta bloquear permanentemente a gratificação das pulsões. Neste “colete-de-forças” a racionalidade e o equilíbrio do Ego ameaçam desmoronar-se. Uma vez que surgiu a partir do Id vai tentar satisfazer os impulsos deste, mas tendo em conta o que a realidade permite e o que a moralidade admite.



LIÇÃO 2

Os estádios do desenvolvimento psicossexual


Segundo Freud, o impulso sexual e a procura do prazer erótico determinam de forma poderosa o desenvolvimento afectivo do ser humano. Os diversos estádios do desenvolvimento são, por isso mesmo, englobados na designação de estádios psicossexuais. Em cada estádio a fonte de satisfação sexual é uma zona diferente do corpo (zona erógena) ou, a rigor, uma diferente orientação da libido (a energia das pulsões sexuais).
O que entende Freud por satisfação sexual ou erótica? Toda a sensação agradável cuja fonte é um determinado órgão ou região corporal. A sexualidade não se reduz nem à manipulação nem ao contacto genital. As pulsões sexuais centram-se, desde o nascimento, em diversos órgãos do corpo e satisfazem-se de modos muito distintos. Somente no final do desenvolvimento psicossexual se impõe a sexualidade genital com a maturação dos órgãos genitais na sequência das transformações fisiológicas da puberdade.
São cinco os estádios do desenvolvimento psicossexual: estádios oral, anal, fálico, de latência e genital.

1. O estádio oral (do nascimento aos 12/18 meses)

Durante os primeiros meses de vida grande parte da interação da criança com o mundo externo processa-se mediante a boca e os lábios. A satisfação libidinal centra-se nessa área. A relação com a mãe assume especial significado, estabelecendo-se essencialmente através do seio materno que não simplesmente alimenta mas também dá prazer.
É levando os objetos à boca que o bebé explora o meio envolvente. A sucção, necessária à alimentação, emancipa-se progressivamente dessa função, tornando-se por si mesma uma fonte de prazer, de gratificação libidinal. Com a dentição, a atividade oral diversifica-se: morder e mastigar enriquecem a panóplia de formas de exploração oral – agora mais agressiva – dos objetos.
As actividades orais são também fonte de potenciais conflitos. O conflito mais significativo deste estádio tem a ver com o processo do desmame.
Uma excessiva frustração dos impulsos erógenos ou um excesso de satisfação desses mesmos impulsos podem conduzir a um resultado semelhante: a fixação. Por fixação no estádio oral entenda-se ficar psicologicamente preso a formas de obtenção do prazer que se centram na boca, nos lábios e na língua.
“Se uma pessoa enquanto bebé foi desmamada ou demasiado cedo ou muito tarde, desenvolverá uma fixação no estádio oral e posteriormente na vida sentirá a necessidade de actividades que consistem, simbólica e realmente, em obter gratificação oral: fumar, beber e comer muito, roer as unhas, consumir frequentemente pastilhas elásticas, bombons, passar horas a conversar ao telefone. Uma pessoa profundamente marcada pela fase oral do seu desenvolvimento – lembremos que é um período de grande dependência em relação a quem cuida de nós e em que prevalece a incorporação de objetos (alimentos, chuchas) – poderá apresentar, quando adulta, características como a credulidade (‘engolir’ tudo o que lhe dizem) mas também humor sarcástico,‘má-língua’, grande capacidade de argumentação ou obstinação na defesa das suas ideias, espírito crítico (disposição para ‘morder e triturar’ as ideias dos outros) e por outro lado, passividade e dependência.’’

(Saul Kassin, Psychology, Prentice-Hall, 2.a edição, p. 571]

Neste estádio, o Id reina durante muito tempo quase sem oposição mas o Ego já está em desenvolvimento.

2. O estádio anal (dos 12/18 meses aos 3 anos)

A partir do primeiro ano de vida a principal fonte de prazer erótico passa a ser o ânus, embora a estimulação oral continue a dar prazer. Durante este período do desenvolvimento psicossexual, o prazer sexual deriva da estimulação do ânus ao reter e expelir as fezes.
A experiência marcante no estádio anal consiste em aprender a controlar os músculos envolvidos na evacuação. A criança terá de aprender que não pode aliviar-se onde e quando quer, que há momentos e lugares apropriados para tal efeito. Pela primeira vez, de forma sistemática, constrangimentos externos limitam e adiam a satisfação dos impulsos internos. O princípio de realidade conjuga-se com o princípio de prazer. A necessidade de adquirir hábitos higiénicos e de controlar as pulsões do Id, mostra que o Ego (começou a desenvolver-se a partir dos 6 meses) já se formou. O confronto com as imposições paternas, o medo de ser punido e o desejo de agradar aos pais mostram que o Superego está a formar-se.
Se a educação do asseio, isto é, se a regulação dos impulsos biológicos da criança é demasiado exigente e severa, esta pode reagir aos métodos repressivos retendo as fezes. Se este modo de reagir for, simbolicamente, generalizado a outros comportamentos a criança desenvolverá, segundo Freud, um carácter anal-retentivo. Em termos psicológicos, esta fixação pode dar origem a um indivíduo caracterizado pela teimosia, mania da pontualidade, avareza, egoísmo, e pela obsessão com a ordem e a limpeza. É importante notar que se for a mãe – como é ainda frequente – a “treinar” de forma severa a criança para ser asseada, podem produzir-se sentimentos latentes de hostilidade em relação à “treinadora”. Eventualmente, a generalização dessa hostilidade pode tornar conflituosa e difícil a relação posterior com o género feminino.
Mas a criança pode reagir às excessivas exigências de higiene e limpeza de uma outra forma: em vez de reter as fezes e de infligir sofrimento a si própria, revolta-se contra a dureza e repressão do treino, expelindo-as nos momentos menos apropriados. Freud fala, neste caso, por generalização simbólica, de carácter expulsivo-anal.
‘‘O carácter expulsivo-anal é o protótipo de todos os traços expulsivos da personalidade: crueldade, assomos de fúria, irritabilidade, sadismo, tendências violentas e destrutivas e também desorganização, para mencionar só alguns.’’

[Calvin S. Hall, Theories of Personality, Wiley, 4.a edição, p. 54]

Contudo, se o treino da criança não assumir aspectos repressivos, se os pais adoptarem uma estratégia firme mas suave, aplaudindo, por vezes de uma forma calorosa e entusiástica, o controlo apropriado das funções excretoras, a criança formará a noção de que a defecação é uma atividade importante, digna de apreço. Por estranho que isso nos possa parecer esta ideia é, segundo Freud, e mais uma vez em termos simbólicos, a base da criatividade e da produtividade, da entrega positiva a uma causa e da generosidade.

3. O estádio fálico (dos 3 aos 6 anos)

Durante o estádio fálico, os órgãos genitais tornam-se o centro da atividade erótica da criança através da auto-estimulação. É o período em que muitas crianças começam a masturbar-se, a aperceber-se das diferenças anatómicas entre os sexos e de que a sexualidade faz parte das relações entre as pessoas.
Vimos que nos dois primeiros estádios (oral e genital) a satisfação sexual era essencialmente autoerótica, centrada na auto-estimulação de determinadas zonas do corpo. No estádio fálico, numa primeira fase, a sexualidade da criança é ainda de natureza autoerótica.
Dedicando bastante tempo a examinar o seu aparelho genital, a criança manifesta uma curiosidade extrema por questões sexuais apesar dessa curiosidade ultrapassar a sua capacidade de compreensão. Não tendo uma noção clara da ligação entre os órgãos genitais e a função reprodutiva, elaboram fantasias e crenças acerca do ato sexual e do processo de nascimento que são completamente desadequadas. Assim, podem pensar que uma mulher engravida porque comeu o seu bebé e que o nascimento consiste em expeli--lo pela boca. O ato sexual é frequentemente considerado um ato agressivo.
Os prazeres da masturbação e as fantasias da criança na sua atividade autoerótica, constituem a base para uma importante mudança de direção da libido, dos impulsos libidinais. Segundo Freud, a criança, a partir de determinada altura, desenvolve uma forte atração sexual pelo progenitor do sexo oposto e sentimentos agressivos e de hostilidade em relação ao progenitor do mesmo sexo. É, no plano da fantasia e a nível inconsciente, a primeira experiência de amor heterossexual. No caso dos rapazes, o desejo de afastar o pai e de ficar com a mãe só para si, é um conflito inconsciente denominado complexo de Édipo. A descoberta do complexo de Édipo era, para Freud, uma das grandes inovações da Psicanálise. A denominação inspira-se na tragédia grega Rei Édipo de Sófocles na qual Édipo, abandonado à nascença, mata, sem o saber, o seu pai e casa com a mãe.

A TRAGÉDIA DE ÉDIPO
Édipo era filho de Laio e de Jocasta, soberanos de Tebas. Nascera sob o signo da maldição de Pélope, a quem Laio, arrastado por amores libidinosos, raptara o filho Crisipo, fugindo com ele quando o adestrava nas corridas de carros. Ultrajado na sua dignidade e ferido nos seus sentimentos de pai, Pélope proferiu contra o ingrato hóspede terrível imprecação: “Laio, Laio, oxalá que nunca tenhas um filho; ou, se chegares a tê-lo, que venhas a perecer às suas mãos!”
Esta súplica foi atendida. Quando Laio consultou o oráculo de Delfos, Apolo respondeu-lhe: “Dar-te-ei um filho, mas está decretado que hás-de perecer às mãos dele… Assim o determinou Zeus, filho de Crono, atendendo às terríveis maldições de Pélope, cujo filho raptaste; foi ele quem pediu para ti todos estes castigos.”
Para fugir a tão funesta predição, Laio e Jocasta decidiram desfazer-se da criança ao nascer. Ligaram-lhe os pés e entregaram-na a um dos seus pastores, para que a expusesse no monte Citéron, onde as feras a devorariam. O pastor, condoído do menino, que recebeu o nome de Édipo (= dos pés inchados), deu-o a outro pastor de Corinto, para que o criasse como filho. Os reis de Corinto, Pólibo e Mérope, que não tinham filhos, adoptaram a criança.
Certo dia, num banquete, um conviva negou que Édipo fosse filho verdadeiro dos reis de Corinto. Correu Édipo a Delfos, para consultar o oráculo de Apolo sobre a sua origem. Soube ali estar-lhe reservado o mais horrível destino: matar o pai e casar com a mãe.
Aterrado, Édipo já não regressou a Corinto. No caminho de Dáulis, cruzou-se com outro cavaleiro, com o qual, por motivo de precedência, se travou de razões, acabando por derribá-lo da sege e matá-lo em legítima defesa. Sem saber que matava seu pai Laio!
Prosseguiu viagem, rumo a Tebas, que ao tempo era devastada por um monstro horrível, cabeça e rosto de donzela, corpo, patas e cauda de leão: era a temível Esfinge. Enviado por Zeus à terra, para castigo dos Tebanos, o monstro divertia-se a propor enigmas aos transeuntes. Quem não soubesse decifrá-los, pagava com a vida a ignorância inculpável.

Já havia sido oferecida a mão da rainha viúva de Laio, Jocasta, a quem resolvesse os problemas da Esfinge. Édipo apresentou-se ao monstro, que lhe propôs esta adivinha: “Qual é o ser que anda com quatro pés, com três e com dois, e quanto mais são os pés em que se apoia, mais devagar caminha?” Édipo, afoito, respondeu-lhe sem hesitação: “Ouve, ainda que não te agrade, a minha voz e a tua perdição, cantora malfadada! Esse ser é o homem: quando criança, apoia--se sobre as quatro extremidades; quando velho, procura um terceiro pé — o bastão — a que se arrima, vergado ao peso dos anos!”
A esfinge, vencida precipitou-se no abismo e Tebas respirou, livre do horrendo tributo de vidas humanas que lhe vinha pagando.
Em prémio de tal proeza, Édipo consorciou-se com Jocasta e instalou-se no trono de Tebas. Sem saber, casara com sua mãe!


Já reinava há muitos anos, com descendência de quatro filhos de Jocasta (Polinices e Etéocles, Antígona e Ismena), quando a peste começou a grassar em Tebas. Morriam os animais, abortavam as mulheres e definhavam os frutos da terra.
Édipo, compadecido das desgraças que dizimavam o seu povo, procura por todos os meios acudir-lhe, indagando a causa do mal. Envia Creonte, seu cunhado, ao santuário de Delfos, a consultar o oráculo sobre a causa de tamanha calamidade.
Respondeu Apolo que o causador da peste era o assassino de Laio, que vivia no reino. Era preciso matá-lo ou expulsá--lo de Tebas.
Propõe-se Édipo descobrir o criminoso e promete vingar pelas suas próprias mãos a morte de Laio.
Depois de várias peripécias e terríveis suspeitas Édipo acaba por convencer-se de que ele próprio é o autor da morte de Laio, seu verdadeiro pai, e que Jocasta, a mulher com quem casara, é a sua mãe. Sendo a verdade evidente, Édipo, destroçado e dilacerado pelo desespero, encontra o corpo morto de Jocasta que acabara de se enforcar no interior do palácio real. Édipo, por sua vez, arranca os olhos, desejando desaparecer e morrer.”

António Freire, O Teatro Grego

O complexo de Édipo manifesta-se em vários comportamentos do rapaz: intrometer-se, agarrando-se às pernas da mãe, quando ela e o pai se abraçam; recusar que o pai se ofereça para brincar com ele e preferir a mãe; querer que seja esta e não o pai a dar-lhe de comer; dizer que vai casar com a mãe quando for crescido ou desenhar os elementos do agregado familiar à exceção do pai.
Para Freud, todos os rapazes (considerava que o Complexo de Édipo era universal) desejam, inconscientemente, matar os seus pais e possuir as suas mães. Note-se bem que o rapaz não  tem consciência, não se apercebe desse desejo incestuoso. Sendo inaceitável e intolerável, o seu acesso à consciência é bloqueado. Contudo, como já sabemos, permanecerá no inconsciente e não deixará de fazer sentir os seus efeitos provocando considerável ansiedade e desconforto psíquico. Para o rapaz, o pai é um rival que gostaria de afastar ou de ver desaparecer. Esse desejo pode provocar sentimentos de culpa muito fortes. Por outro lado, a criança sente que, a nível inconsciente também, querer tomar o lugar do pai pode enfurecê-lo. A hostilidade associa-se ao medo. Medo de quê?
O rapaz receia, tem pavor de que o pai castigue o seu desejo sexual pela mãe reta- liando de forma severa. E que forma mais severa do que cortar o mal pela raiz? O rapaz teme que o seu pai o castre eliminando assim a base ou a fonte dos seus impulsos. Ao temor inconsciente de perder os órgãos genitais deu Freud o nome de “ansiedade de castração” ou “complexo de castração”. Esta fantasia da criança tem, de acordo com Freud, efeitos positivos: dá-se o recalcamento do desejo sexual incestuoso e forma-se um mecanismo de defesa chamado identificação. O rapaz irá imitar e interiorizar as atitudes e comportamentos do pai. Ser como o pai fará com que este pareça menos ameaçador. Identificando-se com o pai (com os aspectos desejáveis do pai) o rapaz tansforma os seus perigosos impulsos eróticos em afecto inofensivo pela mãe ao mesmo tempo que, de uma forma indireta, satisfaz os seus impulsos sexuais a respeito da mãe. Na verdade, a identificação com o pai tem subjacente uma limitação fundamental (só o pai pode ter relações sexuais com a mãe) embora, de forma simplesmente simbólica, permita ao rapaz, através do pai, ter acesso à mãe (quanto mais se parecer com ele mais facilmente se pode imaginar, inconscientemente, no lugar do pai).
A limitação referida é interiorizada sob a forma de tabu do incesto para cuja formação contribuem o sentimento inconsciente de culpa desenvolvida pelo Superego e as restrições sociais. Freud sublinha que a repressão do complexo de Édipo ou, mais propriamente, a sua ultrapassagem marca a etapa final do desenvolvimento do Superego. Este será o herdeiro do complexo de Édipo e a instância que se ergue contra o incesto e a agressividade.
No caso da rapariga, verifica-se uma crise psicossexual semelhante mas o objecto do desejo é o pai e não a mãe. Se, no caso do rapaz, a mãe era objecto de afecto que se transformou em objecto de desejo sexual, no caso da rapariga, o objecto original do afecto é substituído por um outro, o pai, que se deseja agora possuir.
Na perspectiva de Freud, a mudança ocorre porque, desapontada por verificar não possuir o mesmo órgão sexual que os rapazes, a rapariga sente-se “castrada” e responsabiliza a mãe por essa sua condição. Freud definiu este sentimento inconsciente como “inveja do pénis”. Nas palavras de Freud, “a rapariga censura a mãe por a trazer ao mundo tão insuficientemente equipada”. O desprezo e o ressentimento marcarão a relação com a mãe nesta fase. A rapariga transfere o seu amor para o pai – tem o órgão que ela deseja partilhar com ele – aspirando a ocupar o lugar da mãe. É a versão feminina do complexo de Édipo – versão denominada complexo de Electra.
Tal como nos rapazes, a forma de resolver o conflito emocional consiste na identificação com o progenitor do mesmo sexo. Procurando parecer-se cada vez mais com a mãe, a rapariga possui, simbólica e indiretamente, o pai. Contudo, para Freud, a resolução do conflito, no caso das raparigas, é mais complicada e menos bem-sucedida: o Complexo de Electra, apesar de sofrer algumas modificações no confronto com as barreiras que a moral e a realidade erguem, tende a persistir em muitas mulheres. Porquê? Segundo Freud, porque a sociedade em geral reprime com menos severidade (do que no caso dos rapazes) a persistência dos sentimentos de posse em relação ao pai. Além disso, a “inveja do pénis” e o sentimento de inferioridade a ela ligado dificultam seriamente a identificação plena com a mãe. Este é, sem dúvida, um dos aspectos mais polémicos – porventura o mais polémico – da teoria psicossexual de Freud. O criador da psicanálise afirmava que durante o seu desenvolvimento psicossexual, as raparigas viviam uma experiência traumatizante de implicações duráveis: a descoberta de que não tinham pénis. Por essa sensação de castração e de incompletude censuram as mães e desenvolvem a “inveja do pénis”, sentimento que, no entender de Freud, motivará, direta ou simbolicamente, grande parte do seu comportamento futuro. Apresenta como exemplos de “tentativa de recuperação simbólica” do que julgam ter perdido a incorporação do órgão masculino na relação sexual, o desejo de dar à luz crianças do sexo masculino e, muito provavelmente, diria que a tentativa de aceder a posições de destaque no mundo laboral, traduz o desejo inconsciente de compensar uma inferioridade orgânica.

Qual a consequência de fixações durante o estádio fálico? O que implica não ser bem-sucedido/a na resolução do complexo de Édipo/Electra?

‘‘Fixações que se desenvolvem durante o estádio fálico podem originar personalidades que, de facto, continuarão a debater-se com crises ou conflitos de tipo edipiano. Os homens pro- curarão, de forma obsessiva, mostrar que não foram ‘castrados’, seduzindo tantas mulheres quantas possível, sendo pais de muitos filhos ou, como afirmação simbólica de masculinidade, alcançando grande sucesso na carreira profissional. Mas podem também falhar na sua vida sexual e profissional em virtude de sentimentos de culpa (recalcados) por terem competido com o pai pelo amor da mãe.
No caso das mulheres, a continuação dos conflitos de tipo edipiano exprime-se numa forma particular de relação com os homens: um estilo particularmente sedutor mas ao qual subjaz a negação de qualquer contacto sexual (sedução-retraimento). Este tipo de comportamento tem como modelo a atracão original pelo pai (houve atracão e repressão ou recalcamento do desejo). Este padrão comportamental é transferido para interações afectivas posteriores. É o comportamento típico da mulher que atrai os homens e os seduz mas depois fica surpreendida por estes pretenderem relações sexuais com ela.
Em termos gerais, os problemas ligados a este estádio envolvem a sexualidade – no sentido comum do termo – e podem manifestar-se paradoxalmente: vaidade, promiscuidade ou excessiva preocupação com a castidade.’’

(Charles S. Carver, Perspectives on Personality, Allyn and Bacon, 3.a edição, p. 221]

NOTA FINAL: Quando nesta fase Freud se refere ao desejo sexual não quer com isso dizer que a sexualidade seja representada de forma precisa na mente da criança. Ela não sabe o que são relações sexuais. Manifesta simplesmente a vontade de dormir com a mãe, de trocar com ela carícias, beijos. É isto o que se passa a nível consciente.

4. Estádio de latência (dos 6 aos 11 anos)

O estádio de latência é o período da vida dos 6 aos 11 anos marcado por um acontecimento significativo: a entrada na escola e a consequente ampliação do mundo social da criança. Recalcadas no inconsciente, as conturbadas experiências emocionais do estádio fálico não a parecem perturbar. É como se não tivessem acontecido. Esta amnésia infantil liberta a criança da pressão dos impulsos sexuais. A curiosidade da criança centra--se agora no mundo físico e social e não no seu corpo. A energia libidinal é, a bem dizer, sublimada, isto é, convertida em interesse intelectual e canalizada para as actividades escolares, as práticas desportivas, jogos e brincadeiras. Normalmente, o grupo de pares é constituído por crianças do mesmo sexo, uma escolha que reforça a identidade sexual da criança. A ultrapassagem bem-sucedida deste estádio é possível se a criança, agora mais independente dos pais no plano afectivo, desenvolver um certo grau de competência nas actividades que a atraem e naquelas que lhe são socialmente impostas.
Vários intérpretes de Freud consideram que o estádio de latência é mais uma pausa do que um período do desenvolvimento psicossexual (não há nenhuma área específica do corpo que possa ser destacada como zona erógena e nenhum conflito psicossexual). Outras interpretações sugerem que nesta fase, sobre a qual Freud pouco disse, as crianças aprendem a esconder a sua sexualidade do olhar desaprovador dos adultos. Seja como for, a relativa emancipação em relação ao universo familiar prepara o caminho para que o afecto e a atração sexual assumam uma forma adulta.
No final deste estádio o aparelho psíquico está completamente formado.

5. Estádio genital (após a puberdade)

Na adolescência, em virtude da maturação do aparelho genital e da produção de hormonas sexuais, renascem ou reativam-se os impulsos sexuais e agressivos. Em estádios anteriores, o indivíduo obtinha satisfação ou gratificação erótica mediante a estimulação e manipulação de determinadas zonas do seu próprio corpo. Embora no estádio fálico a sexualidade autoerótica comece a ser superada, ela ainda não está orientada de uma forma realista e socialmente aprovada. Manifesta-se para ser reprimida. Além disso tudo se passa na imaginação fantasista da criança.
O estádio genital é um período em que conflitos de estádios anteriores podem ser revividos. Freud dá importância especial à reativação do complexo de Édipo e à sua liquidação. A passagem da sexualidade infantil à sexualidade madura exige que as escolhas sexuais se façam, de forma realista e segundo a norma cultural, fora do universo familiar, sendo os pais suprimidos enquanto objetos da libido ou do impulso sexual.
‘‘Se os conflitos característicos de estádios anteriores do desenvolvimento forem resolvidos de forma satisfatória, o indivíduo entra no último estádio psicossexual com a libido organizada em torno dos órgãos genitais e assim permanecerá toda a vida. A qualidade da gratificação sexual durante o estádio genital difere significativamente da de estádios anteriores. Na verdade, os primeiros afectos e ligações infantis eram essencialmente narcisistas: a criança estava unicamente interessada no seu próprio prazer erótico. No estádio genital – que estabelece a fusão e integração dos impulsos pré-genitais – desenvolve-se o desejo pela gratificação sexual mútua, a capacidade de amar e de partilhar o prazer. Segundo Freud, o estádio genital é o ponto de chegada de uma longa viagem, desde a sexualidade autoerótica à sexualidade realisticamente orientada, característica do indivíduo socializado.
Embora algumas relações interpessoais nasçam da motivação egoísta de simplesmente obter prazer genital, o indivíduo neste estádio final é capaz de se preocupar com o bem-estar da pessoa amada tanto ou mais do que com o seu. Esta capacidade constitui a base de relações duráveis que se prolongam pela vida adulta. A sublimação é especialmente importante neste período porque os impulsos do Id (egoístas, agressivos) continuam e continuarão ativos. A sublimação significará transformar os impulsos libidinais convertendo-os em energia útil para o casamento, a educação dos filhos e o desempenho profissional.
Freud acreditava que não havia uma transição automática para o estádio genital e que a passagem raramente se cumpria de forma plena. Muitas pessoas têm menos controlo sobre os seus impulsos do que o desejável e muitas outras têm dificuldade em satisfazer os impulsos sexuais de modo adequado e socialmente aceitável. Por isso, a personalidade genital tal como ele a descreve corresponde mais a um ideal a atingir do que a uma realidade generalizada.’’

[Charles Carver, op. cit., p. 223]


FREUD E O MÉTODO PSICANALÍTICO


 O método psicanalítico, encarado do ponto de vista simplesmente terapêutico, é uma terapia que se baseia na ideia de que conhecer e compreender a origem dos problemas que nos afetam, nos liberta, em certa medida, de tensões, ansiedades e padecimentos.
A vida psíquica do ser humano desenrola-se sob o signo do conflito.
Os conflitos e incidentes mais marcantes na nossa evolução psíquica remontam, segundo Freud, à época da infância (primeira infância, sobretudo).
Os conflitos característicos da primeira infância podem ser resolvidos, seguindo-se um desenvolvimento psíquico saudável. Mas, como acontece muitas vezes, podem ser mal resolvidos ou mesmo não resolvidos. Isto significa que são recalcados e reprimidos, afastados para longe da nossa consciência. Que esses conflitos se tornem inconscientes não implica de modo nenhum que sejam desativados ou deixem de existir. Com efeito, não se manifestando diretamente ao nível da consciência, tais conflitos e incidentes traumáticos continuam a afetar o nosso comportamento e a nossa personalidade sem disso termos consciência. Quer isto dizer que se manifestam de forma indireta provocando perturbações psíquicas, desordens no comportamento e sofrimentos físicos. Como esses conflitos e incidentes foram recalcados (tornam-se inconscientes), são, sem que o saibamos, a causa dos nossos atuais padecimentos físicos e psíquicos.
É esta “falha” que a terapia psicanalítica, no sentido tradicional do termo, pretende colmatar. Durante o tratamento psicanalítico, o terapeuta tenta conduzir o paciente à origem, até aí inconsciente, dos seus males, ou seja, tenta trazer os conflitos e traumas inconscientes (recalcados) à consciência.
Freud estava plenamente convicto de que, à medida que o Inconsciente se torna consciente, o doente pode aperceber-se do modo como certos acontecimentos da sua infância determinaram o seu comportamento atual. Relembrar os traumas da infância torna o paciente capaz de resolver conflitos que não pôde resolver no passado. Primeiro, porque se apercebe de que as condições que determinaram esses conflitos já não existem (eram conflitos da infância). Segundo, porque pode, confrontando-se com essas vivências passadas, rever a atitude que tomou a seu respeito e desenvolver comportamentos mais saudáveis.
Segundo Freud, esta “catarse” ou libertação de tensões e ansiedades é possível mediante a consciencialização de um conflito doloroso. Freud observou, nos seus pacientes, que “reviver” um incidente traumático e perturbador produzia uma espécie de alívio emocional. Por outras palavras, esse incidente doloroso perdia muita da força e intensidade que tinha. A sua influência no comportamento da pessoa tornava-se bem menor pelo que uma vida mais saudável era, a partir daí, possível.
A terapia psicanalítica afirma que as perturbações psíquicas e as desordens do comportamento derivam (são sintomas) de conflitos inconscientes.
Os sintomas de tais conflitos não desaparecem por se ocultar ou esquecer as suas causas. Assim, para que as perturbações e desordens (tensões e ansiedades) que nos continuam a fazer sofrer possam ser ultrapassadas é necessário trazer à luz da consciência os conflitos ou incidentes recalcados. Reconhecer a causa profunda, inconsciente até então, dos nossos males é a condição para que possamos viver melhor, menos tensos e ansiosos.

Técnicas e processos do método psicanalítico

Desocultar os traumas psíquicos inconscientes, isto é, trazê-los à luz da consciência para que o paciente lide efetivamente com eles, não é tarefa fácil. Tal dificuldade deve--se ao facto de o Ego ter poderosos mecanismos de defesa que bloqueiam o acesso à consciência dos conteúdos inconscientes. Para desbloqueá-los são necessárias técnicas que “enganem” ou ludibriem a vigilância do Ego. As duas técnicas são a livre associação e a interpretação dos sonhos. Além destas duas técnicas, há dois processos que acompanham a terapia psicanalítica: a resistência e a transferência.
O que entende Freud por livre associação?

A livre associação é um dos princípios fundamentais da terapia psicanalítica. Consiste no facto de o psicanalista pedir ao paciente que fale abertamente, de forma espontânea, dos seus desejos, recordações, pensamentos, fantasias, sonhos, por mais embaraçantes, vulgares, irrelevantes ou mesmo sem sentido que possam parecer. Sem censura e sem interrupção, o paciente deve relatar pensamentos e sentimentos tal como eles ocorrem. Constitui-se assim um puzzle cujas peças o analista, escutando atentamente, vai tentar ligar. No seu entender, o que o paciente relata e descreve, de forma desordenada e conforme lhe vem à mente, é um conjunto de pistas sobre o que se passa no Inconsciente. As livres associações, aparentemente ilógicas, “sem ponta por onde se pegue”, são expressões simbólicas de desejos, recordações e sentimentos recalcados no Inconsciente e que estão na origem dos problemas psicológicos e físicos de que padece a pessoa psicanalisada.
Para tornar mais fácil a livre associação o paciente deve estar à vontade: deita-se num divã ou senta-se numa cadeira confortável enquanto o analista, que fala só quando estritamente necessário, se senta fora do seu campo de visão. O analista intervém para, quando for caso disso, apresentar uma interpretação do que o paciente diz e faz.

Em que consiste a interpretação dos sonhos e qual a sua importância no quadro da terapia psicanalítica?

A descrição de sonhos mediante a técnica da livre associação é um dos elementos da terapêutica  psicanalítica. Freud dá um relevo especial à análise e interpretação dos sonhos. Porquê? Porque a censura, durante o sono, perde grande parte da sua eficácia na repressão das manifestações do Inconsciente. Os sonhos são, segundo Freud, “a estrada real de acesso ao Inconsciente”, porque sendo suas expressões ou manifestações relativamente livres, são o meio mais direto de acesso aos desejos, impulsos e conflitos recalcados do paciente. Não obstante, se a vigilância da censura diminui durante o sono ela permanece. Por isso, os sonhos são formas disfarçadas, muitas vezes complexas e confusas, de conflitos e impulsos inconscientes se revelarem. Há que interpretar, decifrar o seu conteúdo simbólico. Como interpreta Freud os sonhos? Distingue o seu conteúdo manifesto do seu conteúdo latente: o conteúdo manifesto é o conjunto de acontecimentos que ocorrem durante o sonho e de que nos lembramos na manhã seguinte (é aquilo que sonhámos); o conteúdo latente é o significado profundo do sonho (aquilo que ele significa). Descobre-se o significado profundo do sonho — o seu conteúdo latente — considerando os acontecimentos do sonho e os objetos que nele surgem como símbolos que exprimem, em geral, desejos inconscientes (um símbolo é aquilo que faz as vezes de, toma o lugar de).  O que se verifica, a este respeito, na terapia psicanalítica? O paciente descreve o conteúdo manifesto, consciente, do sonho; o psicanalista procura interpretar e decifrar o seu significado escondido, inconsciente, i. e., desocultar o seu conteúdo latente, considerando, para esse efeito, que o que se passa no sonho simboliza ou é a manifestação simbólica de forças, impulsos e desejos que escapam à nossa consciência.

Exemplifiquemos:
Uma paciente relatou um sonho em que comprava num grande hipermercado um magnífico chapéu muito caro e preto. É este o conteúdo manifesto do sonho.
Como descobrir o seu significado? As informações recolhidas ao longo da análise são importantes para a descodificação do sonho, para a revelação do seu conteúdo latente. Assim, o analista sabe que a paciente está casada com um homem doente de idade muito avançada e apaixonada por um homem rico, belo e relativamente jovem.
A interpretação irá considerar cada um dos elementos do sonho como símbolos de desejos inconscientes, recalcados:
– O belo chapéu simboliza uma necessidade de ostentação para seduzir o homem amado.
– O preço custoso simboliza o desejo de riqueza.
– O chapéu negro, chapéu de luto, representa simbolicamente a vontade de se ver livre do marido, obstáculo à satisfação dos seus desejos.
O conteúdo latente do sonho, o seu significado profundo, foi assim revelado: significava um desejo inconfessável (ver o marido morto).
Para Freud, o conteúdo manifesto do sonho inclui muitos símbolos que representam o seu conteúdo latente. Estava convicto de que a maioria dos símbolos no sonho é de natureza erótica porque julgava que a maior parte dos impulsos e desejos reprimidos no Inconsciente tinha a ver com a nossa vida sexual.
A sexualidade encontra no sonho uma representação rica e variada.

Freud interpretava como símbolos do órgão sexual masculino os seguintes objetos: árvores, bastões, chaminés, guarda-chuvas, serpentes, peixes (semelhantes na forma); lâminas, sabres, facas, espingardas, revólveres (têm o poder de penetrar e mesmo de ferir). Os símbolos do órgão genital feminino são objetos que formam uma cavidade na qual algo se pode alojar: cavernas, vasos, caixas, gavetas, cofres – sobretudo cofres com jóias –, bolsos, minas, fornos, etc.
A união ou o ato sexual é simbolizada por movimentos como subir escadas, dançar, cavalgar, deslizar e também por acidentes violentos como sermos esmagados por uma viatura. Outros elementos não propriamente eróticos representavam simbolicamente pessoas e factos: o nascimento era simbolizado pela água; a morte, pela partida ou por uma viagem de caminho-de-ferro; os pais pelo rei e pela rainha; as crianças eram por vezes cruamente representadas por pequenos animais ou vermes.

A determinação do conteúdo latente do sonho não resulta da pura e simples aplicação de esquemas simbólicos que, pretensamente, valham para todos os indivíduos. Como já vimos no exemplo referido, o conhecimento de aspectos da vida do paciente são importantes. Mas o próprio paciente pode ter uma participação mais ativa. É o que se verifica quando o analista lhe sugere que efetue livre associação acerca dos seus sonhos. Trata--se de decompor o sonho nos seus vários componentes e pedir à pessoa psicanalisada para pensar no maior número possível de associações relacionadas com cada componente.
Por exemplo, se um homem sonhou que andava a cavalo, o analista poderia perguntar--lhe que coisas associava a cavalos. Conforme o paciente fosse efetuando associações lembrar-se-ia, porventura, de uma jovem que conhecera em aulas de equitação, pela qual se apaixonara mas que não tinha correspondido ao seu amor. Através do processo de livre associação concluir-se-á que, provavelmente, o sonho era acerca do amor não correspondido por essa jovem e expressava simbolicamente um desejo real: ter relações sexuais com ela.

INFORMAÇÃO HISTÓRICA

Quando em 1885 começou a tratar uma doente chamada Anna O. (cujo nome real era Bertha Pappenheim), Josef Breuer descobriu o seguinte acerca desta doente que sofria de cegueira histérica, paralisia do braço e outros sintomas neuróticos:
a) Quando Anna falava de si mesma, muitas vezes lembrava-se de factos há muito tempo reprimidos.
b) Frequentemente, o confronto consciente com esses factos produzia um alívio dos seus dolorosos sintomas.
A “cura pela palavra” foi desenvolvida por Freud. A técnica da livre associação nasceu em 1892 com uma paciente chamada Elizabeth. Freud sugeriu que, deitada, fechasse os olhos e pensasse num dos sintomas de que sofria, tentando recordar o momento em que dele começou a padecer. Depois de várias tentativas sem resultado, Elizabeth lembrou-se de algo importante mas não relacionado com o sintoma. Surpreendido, Freud perguntou-lhe porque levara tanto tempo a revelar esse facto importante. “Podia ter dito logo mas não pensei que fosse aquilo que você queria’’ – disse Elizabeth. Este episódio conduziu Freud a mudar a forma como conduzia as consultas. A partir de então, decidiu que o paciente devia dar livre curso às suas ideias, falar com o menor controlo possível por parte do psicanalista. Nasceu assim o uso da livre associação.


























O sonho tem um conteúdo manifesto – os acontecimentos de que se lembra quem sonha – e um conteúdo latente ou simbólico – o seu significado subjacente que se trata de interpretar ou descodificar.


Qual o papel da resistência e da transferência na metodologia psicanalítica?
A resistência

Intervindo o menos possível, escutando e anotando o que o paciente descreve acerca da sua vida real e dos seus sonhos, o analista também está atento a súbitas mudanças de assunto, a silêncios inesperados, a reações ríspidas do tipo “Isso não tem importância!” ou “Só estou para aqui a dizer disparates!”. Porquê tal atenção? Porque, segundo Freud, esses comportamentos são o sinal de que o paciente está a aproximar-se da recordação de acontecimentos importantes, potencialmente “perigosos” e que, por isso, mecanismos de defesa tentam mantê-los inconscientes, ocultos.
Freud deu o nome de resistência a esta tendência para evitar o confronto com assuntos “ameaçadores”. A resistência é um conjunto de manobras defensivas em grande parte inconscientes destinadas a manter na penumbra acontecimentos e conflitos perturbadores.
No entender de Freud, a resistência é uma “espada de dois gumes”. Por um lado, opõe--se ao esforço terapêutico, retarda o seu progresso, podendo conduzir a um impasse (muitos pacientes têm grande dificuldade em aceitar as interpretações do psicanalista e abandonam a terapia ou passam a faltar frequentemente e a denotar falta de colaboração); por outro lado, onde há resistência, há agitação emocional que assinala a eventual chegada à consciência de algo até então escondido no Inconsciente (não há fumo sem fogo!).
A tarefa do analista consistirá em tornar compreensível ao paciente o fenómeno da resistência de modo a que participe com empenho na libertação das suas tensões e no esforço de compreensão de si mesmo.

A transferência

A relação do paciente com o analista é outro aspecto importante da terapia psicanalista. O paciente pode, a certa altura, começar a relacionar-se com o terapeuta como se ele fosse um pai excessivamente protetor, uma mãe intolerante e demasiado crítica, um irmão detestável, etc., etc.
Acontece também com frequência que o analista seja objecto de amor e de afecto. Freud considerou sempre que o psicanalista não é o real alvo destes sentimentos. É um alvo substituto. Os pacientes transferem para o analista sentimentos característicos da sua relação com pessoas significativamente importantes (pai, mãe, irmãos, etc.). Tal como a resistência, pode ter consequências positivas e negativas.

UM EXEMPLO DE TERAPIA PSICANALÍTICA: O CASO DO HOMEM DOS RATOS

Um dos casos mais famosos e ilustrativos da terapia psicanalítica é o de um homem de 29 anos que, de acordo com o caso, Freud denominou o Homem dos Ratos. Este paciente consultou Freud devido a vários medos, obsessões e comportamentos compulsivos que se manifestavam há já seis anos e o tinham impedido de completar os estudos universitários e uma carreira profissional. Um dos mais reveladores sintomas consistia numa fantasia obsessiva com uma horrível tortura aplicada ao seu pai e a uma mulher que o Homem dos Ratos cortejava: um grupo de ratos esfomeados agarravam-se às nádegas das vítimas abrindo caminho à dentada através das vias naturalmente disponíveis. Freud utilizou esta fantasia juntamente com outros dados para interpretar os problemas, melhor dizendo, os sintomas do Homem dos Ratos.
Segundo Freud, a causa imediata das perturbações comportamentais do Homem dos Ratos era um conflito sentimental: casar ou não com a mulher que era sua namorada desde os 20 anos. Incapaz de, conscientemente, tomar uma decisão, permitira ao seu Incons- ciente “resolver” o conflito tornando-o demasiado doente (produzindo os seus sintomas neuróticos) para completar os estudos e iniciar uma profissão (que eram pré-requisitos para o casamento). A causa profunda, de acordo com a interpretação freudiana, era um conflito edipiano inconsciente, com origem na primeira infância, traduzido numa relação de amor e ódio em relação ao pai. Estas duas causas estavam ligadas. O conflito do Homem dos Ratos acerca do casamento era uma reencenação, uma reactualização simbólica dos sentimentos de amor e ódio a respeito do pai. Casar com ela seria uma expressão de ódio, não casar seria um ato de amor em relação ao pai.
A conexão entre os dois conflitos fora, no entender de Freud, reforçada pela morte do pai pouco depois de o Homem dos Ratos ter começado a relação sentimental com a mulher em questão. Conhecendo a oposição do pai ao namoro, o Homem dos Ratos inconsciente e irracionalmente acreditou que causara a morte do pai ao manter a relação que este detestava. Contudo, também imaginara inconscientemente e de modo irracional que o seu pai continuava vivo e que poderia matá-lo outra vez se casasse. Entre os vários indícios que conduziram Freud às referidas conclusões destacam-se os seguintes:
• Em dado momento da terapia, Freud pediu ao Homem dos Ratos para associar livremente o conceito “Ratos” (Ratten, em alemão) e imediatamente o paciente pronunciou Raten que em alemão significa “dinheiro” e também “índices” da Bolsa. O Homem dos Ratos tinha previamente mencionado que a namorada tinha pouco dinheiro e que o pai desejava que ele casasse com uma prima rica. Estes factos sugeriram a Freud que a obsessiva fantasia dos ratos se relacionava com a oposição do pai ao namoro.
• Em outro momento da terapia, o Homem dos Ratos descreveu o relato materno de um acontecimento que ocorrera quando ele tinha 4 anos. O pai batera-lhe porque ele mordera a sua ama. O rapaz respondeu com uma violenta descarga de inúmeras palavras agressivas. Tão surpreendente foi esta reação que o pai ficou especado e boquiaberto nunca mais lhe voltando a bater. Para a análise freudiana este incidente possuía grande significado. Segundo Freud, morder a ama era, para o rapaz, um ato de natureza sexual e o castigo físico imposto pelo pai contribuíra para o durável receio que o Homem dos Ratos desenvolveu pela reação do pai aos seus impulsos sexuais. Ao mesmo tempo, o seu aparente poder sobre o pai – a sua raiva fizera com que o pai parasse e deixasse de lhe bater – ajudou a fixar no Inconsciente o temor de que poderia matar o pai zangando-se com ele, contrariando-o. Freud apercebeu-se de ligações simbólicas diretas entre o incidente infantil e a fantasia obsessiva e horrível com os ratos: os ratos, mordendo e destruindo o seu pai e a sua namorada, simbolizavam uma outra criatura pequena e que também mordia – o pequeno rapaz que, outrora, mordera a sua querida ama e, simbolicamente, mediante palavras agressivas, o próprio pai.
• O processo da transferência ocorreu igualmente durante a terapia. O Homem dos Ratos descreveu a Freud uma fantasia em que o analista (Freud) queria que o paciente casasse com a sua filha. No sonho, a filha de Freud surgia sem olhos. Em seu lugar estavam duas manchas cinzentas redondas. Freud interpretou este último elemento como simbolizando dinheiro e a fantasia como reconstrução simbólica do conflito interno do paciente, surgindo o analista no lugar do pai que o pressionava para casar com uma prima rica.
• Em outro momento da terapia – que Freud considerou como o momento decisivo – o Homem dos Ratos saltou do sofá onde estava recostado durante a sessão psicanalítica e começou furiosamente a insultar Freud. Refletindo posteriormente sobre este incidente, o Homem dos Ratos lembrou-se de que a sua súbita fúria era acompanhada pelo medo de que Freud lhe batesse e que saltara para se defender.
A partir deste momento da análise foi fácil convencer o paciente a partilhar a interpretação de Freud: os seus padecimentos atuais tinham a sua raiz naquele incidente de infância quando, fisicamente punido pelo pai, reagiu com tremenda agressividade verbal.
Esta experiência de transferência ajudou o Homem dos Ratos a superar a resistência à ideia de que temia e detestava o pai. A aceitação consciente destes sentimentos conduziu, segundo Freud, à cura dos sintomas neuróticos. Numa sentida nota de rodapé ao caso, Freud acrescentou que o Homem dos Ratos viveu saudável pouco tempo. Morreu pouco depois da cura nas trincheiras da I Guerra Mundial.”

[Peter Gray, Psychology, Worth,2ª edição pp. 660-661]